Geledés – Instituto da Mulher Negra articula sua rede de Promotoras Legais Populares-PLP, durante a pandemia da COVID-19, para atuar em suas comunidades, divulgando informações e orientações para o enfrentamento do coronavírus, para o acesso aos recursos emergenciais que estão sendo disponibilizados pelo poder público, além da escuta atenta dos possíveis sinais de ocorrências de violência doméstica.
É uma iniciativa que se soma às diversas ações desencadeadas por pessoas, redes, coletivos, comunidades, organizações da sociedade civil e fundos de financiamentos para reduzir o impacto da doença e do confinamento nas periferias e favelas de São Paulo. Além disso, o Portal Geledés vêm divulgando iniciativas que ocorrem em diferentes regiões do Brasil.
A pandemia do novo coronavírus (COVID-19) afeta todas as pessoas, mas seus impactos são mais brutais nas populações mais vulneráveis, como é o caso da população negra, em particular as mulheres negras. A necessidade do isolamento social resultou na bruta interrupção de recursos para pessoas que realizam serviços de maneira informal, e tornou a casa uma barreira para a disseminação da doença. Contudo, sabemos que a casa é um dos lugares mais perigosos para as mulheres em razão da violência doméstica, sendo necessário uma ação que articule orientação, proteção e solidariedade, em um momento que as chances de intervenção social estão mais reduzidas. Neste sentido, a atuação das PLPs é fundamental para a proteção das mulheres.
Começamos a elaboração da proposta no final de março, e na primeira semana de abril divulgamos a iniciativa no Portal Geledés e elaboramos uma página específica sobre o coronavírus (link); produzimos cards informativos para a disseminação nas mídias sociais, com o passo a passo para o acesso à renda emergencial; e orientações da Organização Mundial de Saúde-OMS sobre a prevenção e a necessidade do isolamento social.
Hoje iniciamos a divulgação quinzenal das ações realizadas pelas PLPs, com informações sobre o processo de escuta e as orientações realizadas para o acesso do Auxílio Emergencial. Os contatos foram realizados por meio de telefone, e algumas trocas de mensagens por WhatsApp e Facebook. Foram coletadas informações relevantes sobre a dificuldades enfrentadas por aquelas que estão em situação de maior vulnerabilidade para realizarem o cadastramento.
Nesta primeira etapa, as ações contemplaram alguns bairros da cidade de São Paulo: na região leste, a PLP Juciara Almeida atendeu demandas de São Mateus, Carrãozinho, Cidade Tiradentes e Itaquera, além de pessoas conhecidas que vivem em Gravataí/RS; na zona sul, a PLP Tereza Rocha atendeu demandas do Campo Limpo, Capão Redondo e Jd Angela; na zona norte, a PLP Dulcimara Alves atendeu a Brasilândia, Freguesia do Ó e Taipas; na zona oeste, Sonia Nascimento, coordenadora do projeto PLPs de Geledés, conversou com mulheres dos bairros Butantã e Previdência, além de pessoas conhecidas da cidade de Ibiúna/SP; e na cidade de Ferraz de Vasconcelos, a PLP Jussara Oliveira ouviu demandas dos bairros Jd São José, Jd Ione, Jd Castelo, Vila Santo Antonio e Rua Tupã. Além disso, as PLPs realizaram contatos com igrejas, associações de moradores e comerciantes de suas localidades, que são atores estratégicos nas suas comunidades para a disseminação de informações.
Demandas e orientações
Foram realizados 51 atendimentos diretos, com esclarecimento de dúvidas e orientações sobre o cadastramento e as condições para recebimento do Auxílio Emergencial.
Com relação ao coronavírus, seus efeitos e formas de prevenção, a maioria demonstrou possuir informações sobre a pandemia, a necessidade de isolamento e as medidas de higiene para evitar o contágio, e destacaram que a televisão foi o principal meio de informação. Outras destacaram informações recebidas de agentes comunitários do programa Saúde da Família, que fazem visitas em domicílios; aquelas com crianças na educação básica pública receberam informações sobre o coronavírus junto com as orientações sobre o auxílio alimentação a estudantes.
O processo de escuta e orientação revelou as diferenças entre as regiões da cidade de São Paulo, suas diversas formas de organização e articulação, bem como a precarização do atendimento municipal em algumas cidades que formam a região metropolitana de São Paulo. Abaixo destacamos os principais pontos abordados nos diálogos:
– Os atendimentos contemplaram principalmente mulheres (poucos homens foram ouvidos). A maioria sozinha e sem rendimentos, pois realizavam trabalhos informais como manicure, faxineira, vendedora autônoma, cuidadora de idosos ou de familiares, sendo que algumas delas integram o grupo de risco ao coronavírus por doenças prevalentes ou pela faixa etária. Todas relataram dificuldades financeiras, muitas com familiares desempregados ou recém demitidos; houve também quem preferiu manter o seguro desemprego. Foram vários os relatos de restrições alimentares em decorrência do aumento do consumo com a reclusão familiar ou pela ausência de renda.
– Do grupo atendido, 2 eram analfabetas, sem celular, e a atendida foi até a residência de uma das PLPs ao saber de sua atuação; o cadastro foi realizado por um familiar de confiança. A situação exige atenção para a não universalização do acesso à telefone móvel e suas implicações para a eficácia da quarentena.
– Ocorreram dois relatos de violência doméstica: uma mulher vítima de violência psicológica por parte de familiares do marido e com dificuldade de acessar o serviço de um centro de atendimento à mulher – houve orientação e a vítima preferiu procurar o serviço de um advogado particular. O outro caso envolvia restrição alimentar de uma criança por questões de saúde, além da família viver em situação de penúria; havia também registros antigos de medida protetiva a favor da mãe em decorrência de violência doméstica. O relato foi encaminhado para o GEVID – Grupo de Enfrentamento à Violência Doméstica/Ministério Público do Estado de São Paulo, que acolheu o caso e está adotando as medidas cabíveis.
– Foram muitas as dúvidas sobre o Bolsa Família e o auxílio emergencial, principalmente sobre as implicações para a manutenção do Bolsa Família. Algumas optaram em ficar com o Bolsa Família por receio de perder o auxílio quando houver a suspensão da quarentena; outras tinham medo do auxílio emergencial demorar e elas ficarem muito tempo sem qualquer tipo de assistência financeira. A maioria das mulheres ouvidas pelas PLPs recebem auxílios entre R$ 134,00 e R$ 220,00 por mês. O temor de ficar sem o Bolsa Família é decorrente do recente desligamento de muitas pessoas deste cadastro, que afetou cerca de um milhão de famílias.
Outro ponto importante a destacar da ação realizada pelas PLPs, são as soluções encontradas pelas comunidades para enfrentar o coronavírus e seus impactos em razão da demora das ações governamentais. Com relação ao poder público, foram destacadas a ação da Secretaria de Assistência Social, que remanejou suas verbas para compra de cestas básicas e doação para instituições assistenciais, e da Secretaria Municipal de Educação, que reverteu a merenda escolar para a assistência social.
Com relação a Ferraz de Vasconcelos, as escutas foram realizadas em articulação com o Núcleo de Mulheres Maria Tereza, que articula a ação das PLPs na cidade. É uma cidade com uma população muito pobre, muitos não tem celular, e cerca de 84% da população é evangélica.
As escutas e orientações contemplaram homens e mulheres, principalmente pessoas em situação de rua, pois na cidade há 3 albergues, além de uma mata onde várias pessoas buscam abrigo. Os albergues são utilizados somente para pernoite, mas os usuários não possuem vínculos, pois os locais, diferente da política realizada nos albergues da cidade de São Paulo, não fazem um cadastro dos usuários, que também não possuem espaço para guarda de documentos. Outra característica da localidade é o alto número de mulheres que são chefe de família.
Dentre as demandas, foram vários os relatos de pessoas sem nenhum documento porque estão em condição de rua; outras sem CPF, certidão de nascimento e sem o nome do pai e da mãe no CPF. As situações exigiram das PLPs a articulação com os órgãos de defesa da cidadania, como Defensoria Pública.
Os problemas encontrados em Ferraz Vasconcelos certamente se repetem em outros municípios, com limitados recursos administrativos e financeiros capazes de responder às urgências da pandemia e garantir os direitos de toda a sua população. Há ainda carência de informações, sendo insuficiente a ação do poder público na orientação e disseminação de informações sobre o coronavírus e de ações que garantam materiais de higiene e alimentação à população da cidade. Neste sentido, o acesso ao auxílio emergencial é fundamental para os moradores da cidade, já que no local muitas famílias foram descadastradas do Bolsa Família.
Cuidando de Nós
Uma das constatações da ação realizada pelas PLPs é que, frente a demora das ações governamentais para enfrentar o avanço do coronavírus, a falta de recursos e alimentos em razão do isolamento social, elas ouviram diversos relatos de ações de solidariedade que foram desencadeadas por associações de moradores, entidades e pessoas das comunidades, que buscaram reduzir o impacto da doença em suas localidades:
– na Brasilândia, instituições que realizam atendimento social estão fazendo doação de cestas básicas; como iniciativa da sociedade civil, o Quilombo da Parada, em Taipas, está fazendo doação de alimentos para a comunidade;
– na zona sul, as igrejas e grupos culturais são os mais engajados e realizam importantes ações de solidariedade na região: a Família Santos Mártires está realizando a campanha Jd. Angela Contra o COVID-19, de arrecadação de cestas básicas, materiais de higiene e limpeza e arrecadação financeira; arrecadação de cestas básicas e produtos de higiene está sendo realizada pela Paróquia Santa Cruz, no Jd Umarizau; o Sarau do Binho também com arrecadação de cestas básicas e financeira para ajudar as comunidades do Campo Limpo; o Coletivo da Quadra, no Pq. Arariba está arrecadando cestas básicas, produtos de higiene e máscaras para pessoas da localidade;
– na zona oeste acontece arrecadação de cestas básicas por igrejas católicas e associações de moradores de favelas e da CUFA, como na São Remo;
– em Cidade Tiradentes ocorre a mobilização por parte de comerciantes de padarias, açougues , pizzarias, além de pessoas que estão ajudando na arrecadação de alimentos e produtos de higiene. Há também ação de distribuição de cestas básicas, como a organizada pelo Babalorixá Jair de Odé, do Ilê Axé Omo Odé, e do time de futebol A.E. Sedex, que faz distribuição de alimentos.
Em Ferraz de Vasconcelos, a indústria Melo Cordeiro juntamente com a Casa de Cultura Raiz realiza ação de doação de cesta básica no bairro Santo Antonio, a mesma ação que é realizada por um pastor na Vila Margarida; a igreja católica Nossa Senhora da Paz recebe doação de alimentos para distribuição para famílias carentes. Na cidade há muitas demandas que exigem ações articuladas do poder público de forma a atender as diversas necessidade dos cidadãos, é a cidade mais carente do Alto Tietê, com alto número de residências em condição irregular, sendo 84% de sua população evangélica.
Na cidade de São Paulo, o Aristocrata Clube, um dos mais antigos clubes negros, em parceria com o Movimento de Mulheres Negras do Brasil, está realizando ação de arrecadação de dinheiro para compra de cestas básicas, que serão doadas em várias regiões da cidade.
Articulação pelo direito das mulheres
Compreendemos a importância do poder público para o enfrentamento da pandemia, contudo, frente à lentidão na tomada de decisões e efetivação de ações relativas à proteção e à transferência de renda, mobilizamos nossa rede de PLPs para que informações sobre cuidado e o auxílio emergencial alcançassem aquelas pessoas que mais necessitam.
A ação realizada pelas PLPs contribui para que os benefícios disponíveis não se restrinjam àquelas pessoas que já tem padrões de cidadania que lhes permitem usufruir direitos, sendo necessário uma ação de caráter comunitário e solidário, que acolha as demandas das mulheres, de seus familiares e de amigos; que acompanhe e monitore os diversos momentos do cadastramento até a efetivação do benefício.
As PLPs, enquanto agentes multiplicadoras de cidadania, que compõem uma rede de proteção social voltada às mulheres, são o elo entre mulheres em situação de vulnerabilidade e as organizações da sociedade civil, cuja atuação conjunta busca alcançar uma vida com dignidade para todas as mulheres.
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